The End of the Road
A vida é repleta de coisas fascinantes. Uma delas, certamente, é viajar, e quando se nasce num lugar em que praias de sonho se encontram a poucos quilômetros de carro, um sábado de Inverno aparentemente destinado ao sofá e ao controle remoto da tv pode se transformar num dia a ser lembrado para sempre.
Era 10:00 da manhã de um sábado, quando comecei a tomar coragem para sair da cama, tarefa difícil naquele que ia ser considerado um dos dias mais gelados do ano. Eu havia passado a noite anterior confraternizando com alguns amigos, e depois havia feito rápida passagem numa boate "high society", apenas para me certificar mais uma vez que estava perdendo tempo ali. Mas agora, ainda meio zonzo e vendo o dia magnífico que estava começando (o dia só começa na hora que a gente acorda...) , eu apenas pensava em me recuperar rapidamente e sair fora atrás das ondas, pois sabia que em algum lugar elas estariam me esperando. Depois de uma tremenda luta entre o "sim" e o "não", o primeiro venceu e então tomei a melhor decisão da semana - partir...
Depois de tomar banho e café, liguei para um amigo, que na mesma hora garantiu estar pronto para a viagem. Como é bom conservar as antigas amizades! Por mais tempo que se fique sem dar notícias, teus amigos de verdade estarão sempre te esperando, como se os anos não tivessem passado, e prontos para encarar qualquer roubada que mereça ser lembrada entre boas risadas depois...E de fato ele lá estava como sempre esteve, uma velha prancha debaixo do braço, aquele velho sorriso, e velhas histórias para contar. Alguns dos dias mais perfeitos da minha vida, aqueles de sol, ondas, de altas risadas, altas gatas e altos insights haviam sido com o famoso Grégor, um cara com alma de artista e espírito de palhaço, capaz de inventar as atitudes mais bizarras apenas para ver os amigos rolando de rir. A hora que estacionei e vi ele chegando, com o mesmo ar malandro de sempre, percebi que seria mais uma barca digna dos velhos tempos, e interiormente sorri. Colocamos as pranchas no rack e voamos.
Embora seja um verdadeiro pesadelo para muitos, a Br 101 pode ser desfrutada com prazer, mas são necessários muitos anos para descobrir seus segredos e saber apreciá-la devidamente, sem medo de morrer na próxima curva, o que não é mais novidade para mim. Porque, depois de mais de uma década percorrendo essas infame "estrada da morte", eu aprendi a relaxar, e me sinto quase tão à vontade dirigindo como se estivesse na sala de minha casa lendo algum de meus livros favoritos. Muitas pessoas não têm sequer coragem de fazer uma simples viagem Florianópolis- Criciúma, e é aí que eu dou risada, porque esse percurso é umas das coisas que eu mais gosto de fazer, e na verdade qualquer desculpa me serve para pegar a estrada. A Petrobrás ficaria feliz se soubesse quanta gasolina já queimei apenas pelo simples prazer de surfar, meditar e cantar em voz alta na estrada da morte.
Então, quando vimos, os visuais passavam velozes, velhas histórias eram relembradas, novas perpectivas pessoais e planos futuros postos a par, o dia magnífico. O destino era qualquer praia onde o vento Sul entrasse de frente e paramos na primeira para conferir. Quebrava uma onda ao longe , mas tão lá fora que seria loucura enfrentar o mar e as correntes sozinhos, já que eu estava há um bom tempo sem surfar e o preparo deveria estar em dia para um desafio daqueles. Observamos uma meia hora alguns malucos penando numas ondas horríveis que reformavam na beirinha e continuamos a viagem.
Poucos minutos depois e estávamos na entrada da praia Perdida, um lugar que na verdade acho meio sinistro, já que a estrada passa bem pelo meio de um povoado que nada tem de acolhedor... Num lugarejo de pescadores como aquele, com um certo clima de cais do porto e um leve cheiro de óleo no ar, a praia vazia e a sensação de que alguém lhe está observando os movimentos de cima no morro, surfar sozinho pode ser uma experiência bem inquietante. Banque o turista e você se verá sem carro e sem nada, passando o maior frio do mundo a quilômetros de seu doce lar... Mas eu tinha ótimas recordações daquelele lugar, e sabia o que fazer para retornar são e salvo com boas lembranças para casa. Após uma rápida descida pela estrada, vi o caminho livre e finalmente embiquei o carro bem na frente da praia.
Por muito tempo irei lembrar da sensação térmica que senti ao sair do carro para ver o mar melhor. Porque, ao abrir a porta e sentir aquela massa polar atingir diretamente o meu rosto, eu tive certeza absoluta que era o frio mais intenso que eu jamais enfrentara antes. Olhei para o Grégor, que não queria nem sair do carro, voltei rapidamente para dentro e me pus a observar o mar, baixo, sem maiores perpectivas de ondas. Estava tão frio que eu havia até esquecido por que estava ali.
Mais para o lado, algumas crianças locais se divertiam nas pequenas ondas que às vezes quebravam, perfeitas para elas com suas pequenas pranchas. Eu estava com meu longboard 9'0 e sabia que havia uma certa diversão, mas esperava mais. Entrar naquele mar para disputar as ondas com os garotos poderia desencadear algum sentimento pouco amigável da platéia que, meus instintos me diziam, assistia oculta dentro dos casebres. Então, fiquei quieto e aguardei os acontecimentos.
Como era de se esperar, os meninos foram saindo um a um , roxos de frio, mas ao passarem do meu lado foram me cumprimentando, ao que eu retribuí. Eles finalmente desapareceram e ficamos, eu e o Grégor, a sós naquela praia esquecida. Não havia mais ninguém ali.
E foi então que aconteceu: o mar, que estava calmo, subitamente reagiu e uma série maravilhosa de meio metrão começou a descascar praia abaixo, com uma perfeição que eu não contava. Eu e o "brother" nos entreolhamos. As ondas que havíamos buscar há mais de cem quilômetros estavam ali, bem na nosso frente, inteiramente nossas....
Mas havia um problema: eu não seria louco de deixar o carro sozinho num fim-de-mundo como aquele. Menos pela perda material do que pelo medo de morrer de frio se tivesse que voltar para casa a pé depois...Perguntei para o Grégor se ele ia surfar. Ele abaixou o vidro do carro, sentiu o vento sul lhe dar um sopro glacial na cara e respondeu que não. E eu, que havia registrado a onda com minha câmera e sabia o que tinha de fazer, entreguei a cyber-shot para ele e tomei a decisão mais irresponsável... Surfar. E então começou a correria.
Já eram 17:00, e o frio que fazia na beira do Oceano, naquele 29 de julho, era quase inacreditável. O ritual de surfar, para quem gosta de longboard , começa um pouco antes, já que é preciso primeiro passar parafina na prancha toda, fixar a quilha (a parte que vai no fundo da prancha e parece a barbatana de um tubarão) e ainda amarrar o strep, o cordão umbilical que nos une à prancha, e que algumas vezes pode signficar a diferença entre a vida e a morte. Foi só quando tirei a camisa e senti o ar gelado me castigar que percebi no que estava me metendo. E o pior é que depois de tudo, já com a roupa de borracha e a prancha pronta, eu percebi que o mar havia novamente se acalmado. Como se não bastasse, o meu amigo ainda falava que não ia valer a pena... Mas eu queria saber até onde era capaz de ir para pegar aquelas ondas, e nada me faria desistir.
Então, ao virar para o Oceano, com os navios ao fundo e subitamente energizado pela situação toda, tive um tremendo flashback, The Cure começou a passar pela minha cabeça, lembranças há muito esquecidas de uma outra barca com aquele som afloraram, e eu sentia que tudo agora fazia sentido...Com um berro, corri em direção do mar e me atirei, já remando com toda a vontade da minha vida, agradecendo a Deus pelo frio, pelas minhas pernas, pela minha família, meus amigos e por tudo, tudo agora era sublime e eu precisava ter chego naquela praia remota e enfrentado o maior frio de minha vida para compreender tudo isso ... O cheiro de óleo, o perigo, a amizade, a minha saúde que me permitia surfar... Tudo era muito valioso para mim...Naquele frio extremo, que era ainda pior porque estava com uma velha roupa de borracha já roída pelas ondas do mar, eu senti, afinal, que podia muito mais, que minha vontade poderia me levar para onde eu quisesse, e todos os problemas que havia enfrentado na vida haviam tido seu propósito para a minha evolução. Então, já na arrebentação, sentei na prancha e , sentindo os cabelos e pés gelados e dando risadas sozinho, comecei a esperar e me preparar pela próxima série de ondas.
E ela veio, uma pequena onda maravilhosa que abriu perfeita, mas na qual fiquei em pé quase tarde demais, lá na frente do pranchão com as mãos para cima, mas ela foi mais rápida e acabou me derrubando... A sensação seguinte foi como ser batido numa máquina de lavar roupas cheia de sorvete. Agitei a cabeça como um gato escaldado só pra ver as próximas cinco ondas estourarem bem na minha cabeça , cobrando o couvert daquele espetáculo, que afinal eu não ia deixar de pagar... Quando me vi livre concluí que era bem melhor fica na parte de cima da prancha e tratei de puxar a minha bem rápido! Sobre meio metro d'água, mas parecia a minha tábua da salvação. Se tivesse passado por isso no início da minha experiência com o surf, provavelmente desisitiria de tudo, me mudava para São Tomé das Letras e viraria um expert em gnomos e ets. Mas já havia enfrentado situações bem absurdas antes, sabia que o êxtase tem um preço... virei a prancha e remei novamente para dentro.
Uma das melhores sensações de surfar em Santa Catarina é saber que aqui não há o perigo de ataques de tubarão. Normalmente eu não penso muito nisso, mas ali, com o tempo cinzento e do lado de um porto como aquele, sozinho e agora morrendo de frio, era impossível não lembrar. Eu já tive uma experiência indescritível com botos, que certa vez vieram dar um olhada muito de perto no intruso que estava em seus domínios(eu), e ainda bem que eles foram sensíveis o suficiente para verem que eu não tinha nenhuma má intenção. Porque eles passaram tão perto, mas tão perto, que eu tive certeza que aquele sorriso que vi mergulhar ao alcance da minha mão era para me ensinar muita coisa, e de fato aprendi uma grande lição de humildade, e compreendi que a Harmonia é a chave do Universo. Naqueles intensos e eternos segundos em que me vi cara a cara com aqueles meu quase-irmãos do mar, e bem mais evoluídos do que eu, totalmente senhores em seu elemento, percebi de como a vida humana é frágil, e de quão insanos somos em acreditar sermos mais fortes do que a Natureza. Eu já perdi a conta das vezes que vi os botos passando por perto, mas aquela experiência foi a mais singular que passei dentro da água. Nunca mais fui o mesmo depois daquele fim-de-tarde em que vi os botos sorrindo e mergulhando a menos de meio metro de mim.
Eu ainda peguei mais umas quatro ou cinco ondinhas, mas a última foi especial: foi uma simples questão de ficar em pé e se deixar levar, se tornar um com a energia do oceano, sem esforço algum, sem nenhuma necessidade de agredir nem radicalizar, e realmente nada mais importava... Sentia, deslizando em meu longboard, o que jamais havia sentido com a mesma intensidade sobre uma pranchinha:que surfar é um grande presente, um privilégio sem igual, e quantos anos foram necessário para mim compreender isso... A pequena parede ia abrindo como uma maravilha líquida, e eu de pé!... A onda ia chegando na beirinha e eu insistindo... querendo mais... ela finalmente acabou, mas já havia valido tudo a pena... eu havia encontrado um sentido no fim daquilo tudo. Instantes depois, eu já estava novamente dentro do carro, feliz, o ar quente ligado no máximo, pronto para voltar para casa... A busca tinha sido perfeita.
Algumas pessoas podem achar esse relato fatalista, um exagero da verdade, e pode até ser. Talvez. Os limites entre a dor e o prazer, o céu e o inferno, a vida e a morte são delimitados por uma linha tênue e muito frágil. O único momento em que senti a morte de perto, nessa pequena grandiosa viagem , foi quando, a mais de cem por hora num lugar em que meu pai quase perdeu a vida, um motorista irresponsável tentou uma ultrapassagem absurda, invadindo a minha pista e com os farós na minha cara ... Um décimo de distração, e essas linhas jamais seriam escritas. Eu seria apenas mais uma trágica estatística da BR101.
Viver é uma arte, e sobreviver pode ser uma simples questão de habilidade, mas também de destino. Até que ponto devemos o fato de estarmos vivos à nossa astúcia? Até que ponto sentimos que fomos salvos no último segundo pelas mãos de uma Força Maior?Onde acaba um e começa outro?Não sei...
Mas, pensando bem, quem de verdade poderia responder a essas coisas?
Era 10:00 da manhã de um sábado, quando comecei a tomar coragem para sair da cama, tarefa difícil naquele que ia ser considerado um dos dias mais gelados do ano. Eu havia passado a noite anterior confraternizando com alguns amigos, e depois havia feito rápida passagem numa boate "high society", apenas para me certificar mais uma vez que estava perdendo tempo ali. Mas agora, ainda meio zonzo e vendo o dia magnífico que estava começando (o dia só começa na hora que a gente acorda...) , eu apenas pensava em me recuperar rapidamente e sair fora atrás das ondas, pois sabia que em algum lugar elas estariam me esperando. Depois de uma tremenda luta entre o "sim" e o "não", o primeiro venceu e então tomei a melhor decisão da semana - partir...
Depois de tomar banho e café, liguei para um amigo, que na mesma hora garantiu estar pronto para a viagem. Como é bom conservar as antigas amizades! Por mais tempo que se fique sem dar notícias, teus amigos de verdade estarão sempre te esperando, como se os anos não tivessem passado, e prontos para encarar qualquer roubada que mereça ser lembrada entre boas risadas depois...E de fato ele lá estava como sempre esteve, uma velha prancha debaixo do braço, aquele velho sorriso, e velhas histórias para contar. Alguns dos dias mais perfeitos da minha vida, aqueles de sol, ondas, de altas risadas, altas gatas e altos insights haviam sido com o famoso Grégor, um cara com alma de artista e espírito de palhaço, capaz de inventar as atitudes mais bizarras apenas para ver os amigos rolando de rir. A hora que estacionei e vi ele chegando, com o mesmo ar malandro de sempre, percebi que seria mais uma barca digna dos velhos tempos, e interiormente sorri. Colocamos as pranchas no rack e voamos.
Embora seja um verdadeiro pesadelo para muitos, a Br 101 pode ser desfrutada com prazer, mas são necessários muitos anos para descobrir seus segredos e saber apreciá-la devidamente, sem medo de morrer na próxima curva, o que não é mais novidade para mim. Porque, depois de mais de uma década percorrendo essas infame "estrada da morte", eu aprendi a relaxar, e me sinto quase tão à vontade dirigindo como se estivesse na sala de minha casa lendo algum de meus livros favoritos. Muitas pessoas não têm sequer coragem de fazer uma simples viagem Florianópolis- Criciúma, e é aí que eu dou risada, porque esse percurso é umas das coisas que eu mais gosto de fazer, e na verdade qualquer desculpa me serve para pegar a estrada. A Petrobrás ficaria feliz se soubesse quanta gasolina já queimei apenas pelo simples prazer de surfar, meditar e cantar em voz alta na estrada da morte.
Então, quando vimos, os visuais passavam velozes, velhas histórias eram relembradas, novas perpectivas pessoais e planos futuros postos a par, o dia magnífico. O destino era qualquer praia onde o vento Sul entrasse de frente e paramos na primeira para conferir. Quebrava uma onda ao longe , mas tão lá fora que seria loucura enfrentar o mar e as correntes sozinhos, já que eu estava há um bom tempo sem surfar e o preparo deveria estar em dia para um desafio daqueles. Observamos uma meia hora alguns malucos penando numas ondas horríveis que reformavam na beirinha e continuamos a viagem.
Poucos minutos depois e estávamos na entrada da praia Perdida, um lugar que na verdade acho meio sinistro, já que a estrada passa bem pelo meio de um povoado que nada tem de acolhedor... Num lugarejo de pescadores como aquele, com um certo clima de cais do porto e um leve cheiro de óleo no ar, a praia vazia e a sensação de que alguém lhe está observando os movimentos de cima no morro, surfar sozinho pode ser uma experiência bem inquietante. Banque o turista e você se verá sem carro e sem nada, passando o maior frio do mundo a quilômetros de seu doce lar... Mas eu tinha ótimas recordações daquelele lugar, e sabia o que fazer para retornar são e salvo com boas lembranças para casa. Após uma rápida descida pela estrada, vi o caminho livre e finalmente embiquei o carro bem na frente da praia.
Por muito tempo irei lembrar da sensação térmica que senti ao sair do carro para ver o mar melhor. Porque, ao abrir a porta e sentir aquela massa polar atingir diretamente o meu rosto, eu tive certeza absoluta que era o frio mais intenso que eu jamais enfrentara antes. Olhei para o Grégor, que não queria nem sair do carro, voltei rapidamente para dentro e me pus a observar o mar, baixo, sem maiores perpectivas de ondas. Estava tão frio que eu havia até esquecido por que estava ali.
Mais para o lado, algumas crianças locais se divertiam nas pequenas ondas que às vezes quebravam, perfeitas para elas com suas pequenas pranchas. Eu estava com meu longboard 9'0 e sabia que havia uma certa diversão, mas esperava mais. Entrar naquele mar para disputar as ondas com os garotos poderia desencadear algum sentimento pouco amigável da platéia que, meus instintos me diziam, assistia oculta dentro dos casebres. Então, fiquei quieto e aguardei os acontecimentos.
Como era de se esperar, os meninos foram saindo um a um , roxos de frio, mas ao passarem do meu lado foram me cumprimentando, ao que eu retribuí. Eles finalmente desapareceram e ficamos, eu e o Grégor, a sós naquela praia esquecida. Não havia mais ninguém ali.
E foi então que aconteceu: o mar, que estava calmo, subitamente reagiu e uma série maravilhosa de meio metrão começou a descascar praia abaixo, com uma perfeição que eu não contava. Eu e o "brother" nos entreolhamos. As ondas que havíamos buscar há mais de cem quilômetros estavam ali, bem na nosso frente, inteiramente nossas....
Mas havia um problema: eu não seria louco de deixar o carro sozinho num fim-de-mundo como aquele. Menos pela perda material do que pelo medo de morrer de frio se tivesse que voltar para casa a pé depois...Perguntei para o Grégor se ele ia surfar. Ele abaixou o vidro do carro, sentiu o vento sul lhe dar um sopro glacial na cara e respondeu que não. E eu, que havia registrado a onda com minha câmera e sabia o que tinha de fazer, entreguei a cyber-shot para ele e tomei a decisão mais irresponsável... Surfar. E então começou a correria.
Já eram 17:00, e o frio que fazia na beira do Oceano, naquele 29 de julho, era quase inacreditável. O ritual de surfar, para quem gosta de longboard , começa um pouco antes, já que é preciso primeiro passar parafina na prancha toda, fixar a quilha (a parte que vai no fundo da prancha e parece a barbatana de um tubarão) e ainda amarrar o strep, o cordão umbilical que nos une à prancha, e que algumas vezes pode signficar a diferença entre a vida e a morte. Foi só quando tirei a camisa e senti o ar gelado me castigar que percebi no que estava me metendo. E o pior é que depois de tudo, já com a roupa de borracha e a prancha pronta, eu percebi que o mar havia novamente se acalmado. Como se não bastasse, o meu amigo ainda falava que não ia valer a pena... Mas eu queria saber até onde era capaz de ir para pegar aquelas ondas, e nada me faria desistir.
Então, ao virar para o Oceano, com os navios ao fundo e subitamente energizado pela situação toda, tive um tremendo flashback, The Cure começou a passar pela minha cabeça, lembranças há muito esquecidas de uma outra barca com aquele som afloraram, e eu sentia que tudo agora fazia sentido...Com um berro, corri em direção do mar e me atirei, já remando com toda a vontade da minha vida, agradecendo a Deus pelo frio, pelas minhas pernas, pela minha família, meus amigos e por tudo, tudo agora era sublime e eu precisava ter chego naquela praia remota e enfrentado o maior frio de minha vida para compreender tudo isso ... O cheiro de óleo, o perigo, a amizade, a minha saúde que me permitia surfar... Tudo era muito valioso para mim...Naquele frio extremo, que era ainda pior porque estava com uma velha roupa de borracha já roída pelas ondas do mar, eu senti, afinal, que podia muito mais, que minha vontade poderia me levar para onde eu quisesse, e todos os problemas que havia enfrentado na vida haviam tido seu propósito para a minha evolução. Então, já na arrebentação, sentei na prancha e , sentindo os cabelos e pés gelados e dando risadas sozinho, comecei a esperar e me preparar pela próxima série de ondas.
E ela veio, uma pequena onda maravilhosa que abriu perfeita, mas na qual fiquei em pé quase tarde demais, lá na frente do pranchão com as mãos para cima, mas ela foi mais rápida e acabou me derrubando... A sensação seguinte foi como ser batido numa máquina de lavar roupas cheia de sorvete. Agitei a cabeça como um gato escaldado só pra ver as próximas cinco ondas estourarem bem na minha cabeça , cobrando o couvert daquele espetáculo, que afinal eu não ia deixar de pagar... Quando me vi livre concluí que era bem melhor fica na parte de cima da prancha e tratei de puxar a minha bem rápido! Sobre meio metro d'água, mas parecia a minha tábua da salvação. Se tivesse passado por isso no início da minha experiência com o surf, provavelmente desisitiria de tudo, me mudava para São Tomé das Letras e viraria um expert em gnomos e ets. Mas já havia enfrentado situações bem absurdas antes, sabia que o êxtase tem um preço... virei a prancha e remei novamente para dentro.
Uma das melhores sensações de surfar em Santa Catarina é saber que aqui não há o perigo de ataques de tubarão. Normalmente eu não penso muito nisso, mas ali, com o tempo cinzento e do lado de um porto como aquele, sozinho e agora morrendo de frio, era impossível não lembrar. Eu já tive uma experiência indescritível com botos, que certa vez vieram dar um olhada muito de perto no intruso que estava em seus domínios(eu), e ainda bem que eles foram sensíveis o suficiente para verem que eu não tinha nenhuma má intenção. Porque eles passaram tão perto, mas tão perto, que eu tive certeza que aquele sorriso que vi mergulhar ao alcance da minha mão era para me ensinar muita coisa, e de fato aprendi uma grande lição de humildade, e compreendi que a Harmonia é a chave do Universo. Naqueles intensos e eternos segundos em que me vi cara a cara com aqueles meu quase-irmãos do mar, e bem mais evoluídos do que eu, totalmente senhores em seu elemento, percebi de como a vida humana é frágil, e de quão insanos somos em acreditar sermos mais fortes do que a Natureza. Eu já perdi a conta das vezes que vi os botos passando por perto, mas aquela experiência foi a mais singular que passei dentro da água. Nunca mais fui o mesmo depois daquele fim-de-tarde em que vi os botos sorrindo e mergulhando a menos de meio metro de mim.
Eu ainda peguei mais umas quatro ou cinco ondinhas, mas a última foi especial: foi uma simples questão de ficar em pé e se deixar levar, se tornar um com a energia do oceano, sem esforço algum, sem nenhuma necessidade de agredir nem radicalizar, e realmente nada mais importava... Sentia, deslizando em meu longboard, o que jamais havia sentido com a mesma intensidade sobre uma pranchinha:que surfar é um grande presente, um privilégio sem igual, e quantos anos foram necessário para mim compreender isso... A pequena parede ia abrindo como uma maravilha líquida, e eu de pé!... A onda ia chegando na beirinha e eu insistindo... querendo mais... ela finalmente acabou, mas já havia valido tudo a pena... eu havia encontrado um sentido no fim daquilo tudo. Instantes depois, eu já estava novamente dentro do carro, feliz, o ar quente ligado no máximo, pronto para voltar para casa... A busca tinha sido perfeita.
Algumas pessoas podem achar esse relato fatalista, um exagero da verdade, e pode até ser. Talvez. Os limites entre a dor e o prazer, o céu e o inferno, a vida e a morte são delimitados por uma linha tênue e muito frágil. O único momento em que senti a morte de perto, nessa pequena grandiosa viagem , foi quando, a mais de cem por hora num lugar em que meu pai quase perdeu a vida, um motorista irresponsável tentou uma ultrapassagem absurda, invadindo a minha pista e com os farós na minha cara ... Um décimo de distração, e essas linhas jamais seriam escritas. Eu seria apenas mais uma trágica estatística da BR101.
Viver é uma arte, e sobreviver pode ser uma simples questão de habilidade, mas também de destino. Até que ponto devemos o fato de estarmos vivos à nossa astúcia? Até que ponto sentimos que fomos salvos no último segundo pelas mãos de uma Força Maior?Onde acaba um e começa outro?Não sei...
Mas, pensando bem, quem de verdade poderia responder a essas coisas?
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Esse artigo foi publicado no site Waves no dia 09/08/07, com o título de Uma estrada que desafia a alma.
Veja : http://waves.terra.com.br/novo/layout4.asp?id=26800&sessao=
1 Comentários:
Gustavo
Este teu relato foi para mim a mais linda oração à Vida,na verdade uma canção de Amor àquele que jamais em tempo nenhum nos desampara.
Foi pura emoção que li o que escreveste. Lágrimas vieram aos meus olhos quando chegaste no teu encontro com os botos. És previlegiado de muitas formas.
Minha alma te revencia irmão de romagem.
Que o Pai te abençoe todos os dias a este filho que é um anjo disfarçado de ser humano.
Com carinho
Beth
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