Sede de Mundo
De volta à fonte. Haapiti, Polinésia Francesa
A pequena canoa a motor
foi lentamente se aproximando do point, aproveitando o intervalo entre as
séries. Então, do profundo azul do Oceano Pacífico, por uma brecha na gigantesca
barreira de corais que circunda a ilha, uma esquerda cristalina entrou contornando
e despejando um tubo sobre o arrecife, um local de SUP deslizando em plena
sintonia com a onda.
E eu – depois de uma travessia de
10 mil km e não querendo outra coisa que não fosse mergulhar de uma vez naquelas
águas transparentes – fiz menção de já ir colocando o leash e pulando no mar
dali mesmo. Mas o guia disse: “Watch”.
Obedeci. Afinal, por mais
‘dreamin’ que parecesse aquela arrebentação, ainda era fundo de coral, pedra
bruta. Lembrei de que já fazia cinco meses que eu não surfava. Puxei a cyber-shot e fiquei os próximos 10
minutos apenas fotografando e contemplando.
Era setembro, temporada dos swells
de sul nas Ilhas Sociedade. E, ali, realizando um de meus maiores sonhos, eu
estava prestes a surfar Haapiti, na costa sudoeste de Moorea. Como de costume,
sozinho. E como não poderia deixar de ser, novamente com meus dois longboards
vermelhos – minhas quads velhas-de-guerra já testadas e aprovadas em Sandino,
Chicama, Restaurants e Cloudbreak.
Ao contrário das outras trips,
que haviam rolado com astral de pura aventura e diversão, nesta eu
experimentava uma sensação diferente – uma certa ansiedade. O fato era que, aos
37, eu já começava a pensar na crise dos 40 – no balanço que fazemos no meio da
vida entre todos aqueles sonhos acalentados desde a infância e a realidade de
quem nós afinal nos tornamos. Quanto mais se me aproximava a quarta década,
mais eu começara a sentir um certo temor, um medo de um dia ser despertado de
repente por um tremendo arrepio de consciência, e então me ver num bar sujo esperando
mais um aperitivo enquanto tantas aspirações continuavam não realizadas, sem
sequer uma resposta. Eu não queria chegar na metade do caminho simplesmente
dizendo, por exemplo, que tal realização tinha sido “o meu Everest”. Não. Eu
queria chegar lá sabendo se o Himalaia era importante para mim, e se fosse, o
que eu havia feito a respeito. Eu precisava mesmo ir um pouco longe para
pensar.
E se havia um lugar no planeta
que eu realmente desejava era a Polinésia Francesa. Aquela inacreditável paleta
azul no oceano... as lindas mulheres de cabelos negros... aquela pureza no
semblante... os tubos perfeitos... toda aquela mística de paraíso me atraíam há
muito tempo. Então, eu estava mesmo de olho na oportunidade – quando esta
surgiu, eu fechei a trip em uma tarde, digitando em meu notebook no conforto da
minha casa. Sabe a sensação de estar com
um bilhete premiado e não acreditar que é seu? Mesmo com tudo garantido, eu só
fui cair na real com o rugido do avião em Floripa.
Finalmente, então... o Tahiti?!
Sim, eu me sentia mais aliviado. Porém, lá no fundo, alguma coisa ainda me
incomodava.
Mas eu entendia aquela inquietação.
O fato era que mesmo já tendo feito algumas boas viagens pelo Brasil, eu só começara
a viajar pra fora do país no começo dos 30, o que eu considerava tarde, e acabara
ficando com uma sensação de tempo perdido. O caminho era longo, bem longo, e eu
estava mesmo precisando fazer um balanço dos últimos anos. Assim, me pus a
recordar: a primeira surftrip com os amigos, para o norte do Peru. Esquerdas de
cansar as pernas em Lobitos. Depois, América Central, onde peguei o tubo da vida
e percebi que dava para mim. Aquela volta pelo Caribe panamenho, sem condições
físicas para surfar, na verdade caminhando com dificuldade devido a uma severa
lesão no quadril, mas uma viagem importantíssima para provar a mim próprio que
a mente era teimosa e continuava mandando no corpo. Depois, meu primeiro voo solo
para fora, aquele cut-back inesquecível no deserto. A barca eterna para Tavarua.
A volta para Malabrigo, já me sentindo
em casa, em abril de 2016. E agora, e finalmente, o Tahiti.
Como tantas vezes acontece, a realidade
nunca sai de acordo com os nossos planos. Para começar, as conexões entre
Florianópolis e Papeete (um trecho de 40 horas) eram simplesmente terríveis – foi,
de longe, a pior viagem de ida que tive até hoje. Depois, a pousada. Era segura,
de frente para o mar, e com um café da manhã servido; se você surfasse, o dono
te levava de barco para dois picos de surf próximos – mas nada muito além
disso. Não havia ar-condicionado, o banheiro era compartilhado e o wi-fi era
definitivamente uma porcaria. Eu não posso reclamar do proprietário, que me
levou até ao médico quando vaquei e pensei ter estourado o tímpano, mas percebi
que ter que cuidar de tudo sozinho – buscar os hóspedes no terminal do ferry, fazer
o supermercado, preparar o café da manhã, limpar os banheiros, regar o jardim, cuidar
da filha, me levar para surfar – deixava a reserva de paciência dele meio que
no limite. Eu até entendo, mas não concordo – e ver o seu próprio anfitrião estressado
e gritando com você pela barreira da língua e pelo fato de você estar sem seu
aparelho de audição no ouvido inflamado foi uma experiência que nunca esperei
ter, e nem quero repetir – ainda mais no Tahiti.
De todo modo, como surfista viajante,
eu não podia me queixar. Para começar, o oceano – o que eu havia feito para
merecer todo aquele azul-turquesa? O visual das montanhas, aguilhões apontando
para os céus em meio às brumas; o clima em constante mutação; e as vagas,
sempre a arrebentar ao longe com assustadora beleza no anel de coral – o Tahiti
é um lugar dramático. E agora, em meio aquele cenário, eu me preparava para a
minha primeira sessão na Polinésia.
Fui sem pressa, curtindo o
momento. De onde eu estava, bem no meio do passe no recife, um canal seguro de
onde podia ver uma esquerda de um lado, e à minha direita, uma onda quebrando
nesta mesma direção. Paro de remar. Olho para as escarpas ao longe. Bom Deus,
eu estou aqui mesmo?
Vou sentindo e entrando na vibe,
decifrando o crowd. Um local de SUP sorri e acena. Aceno de volta e sorrio
também. Fiquei sabendo que lá é costume apertar a mão dos outros surfistas no
outside, então cheguei prestando bastante atenção nisso, mas como não vejo
ninguém fazendo, fico na minha. Do nada, sobra uma para mim. Remo, a galera
vira para ver, dropo e vou costurando. A onda acaba, saio e deixo a corrente me
trazer de volta, devagar. Já falei que é para esses momentos que eu vivo? Esquerdas
perfeitas, água agradável e um canal que parece moldado pelas mãos de Deus. Trabalhei
e economizei meses por este momento, não me belisque, faz favor. De repente, percebo um vulto do meu lado, me viro
e... é um cara estendendo a mão!
Caramba, então era verdade?! Isso
nunca aconteceu antes, um completo desconhecido vir até mim apenas para me
cumprimentar? Surfista, quando se aproxima muito de outro que não conhece,
normalmente é para rabear, olhar feio ou xingar. Um tanto surpreso, retribuo o
comprimento com um tímido “Hi!”.
Fico feliz, claro, mas continuo
ligado. Imagine, surfar em fundo de
coral... Já falei que o guia está surfando também... de capacete? Então, nada
de baixar a guarda aqui. E depois, já
notei que tem uns fominhas também. Claro que são os mais sérios, que novidade.
É sempre assim, quanto mais adesivos no deck e ondas pegas por minuto, mais
amarrados ficam os semblantes dos caras. Esqueça suas fantasias com os Mares do
Sul, aqui também tem disso. Merda, olha o doido vindo ali! Rápido, larga essa
prancha, respira, mergulha e... Anotou a placa? O cara veio manobrando e
despencou com a quilha a um centímetro da minha cabeça! Meu, o que eu estava
pensando? Essa foi por pouco...
Moorea é considerada ilha-irmã do
Tahiti e é verde, absolutamente verde; basicamente, um imenso jardim. Pude observar
com atenção o estilo de vida deles; é de uma simplicidade encantadora. Mas que,
claro, faz todo o sentido. Afinal, quando você vive isolado num rochedo no meio
do mar, o que fazer? Exatamente, vive-se de acordo com o que a Natureza oferece!
Peixe, coco, abacaxi, manga... Fruta-pão... Flores... Pérolas... Claro que eles já estão tão conectados quanto
qualquer um de nós, mas por um breve momento, eu tive um vislumbre de como é a
vida humana em seu estado natural – e, em contraste, do quão fajuto se tornou,
em tantos aspectos, o nosso aclamado estilo de vida “moderno”. Fiquei pensando
de como já estamos tão imersos na loucura, na verdade, que, sem mais nem
perceber, acabamos a enaltecendo, como quando exaltamos restaurantes capazes de
cobrar fortunas por pratos mirabolantes – centenas de dólares por uma refeição.
Você acredita que existe um, que tem não sei quantas estrelas no guia Michelin,
famoso por preparar uma sobremesa temperada com ouro em pó? Ouro em pó! Impossível
ficar indiferente com um disparate desses, fingir que não é conosco. Claro que
é. São nossos valores, esta insana
cultura de plástico que nós mesmos criamos. Por um momento, senti mesmo
vergonha por já ter precisado ir ao médico e nutricionista para saber o que
devo comer. Que prova maior do quão processada se tornou minha alimentação...
Mas acho que o que mais me surpreendeu foi o hábito que todos eles – homens e
mulheres, velhos, jovens e crianças... têm de andar com uma flor na orelha. Sim,
uma flor. Vão ao supermercado... Passear... Trabalhar... Brincar... Imagine a
cena: um homem adulto em pleno século XXI caminhando tranquilamente na rua com a
família, a cabeça adornada com uma flor! Parece factível? Para um americano ou
europeu, algo impossível de se compreender. Mas que bom saber que num mundo como
o nosso esse povo ainda mantenha essa inocência fundamental.
Mais surfistas aparecem: dois
pesos-pesados tatuados ao estilo polinésio chegam remando em seus stand-ups.
Continuo ligado, esperando minhas ondas, mas logo percebo como o tempo longe
d’água cobrou seu preço. Sem ritmo, começo a dropar atrasado e vacar vez após
vez. Numa mais cavada o pranchão embica, sou lançado de cabeça para baixo e
depois percebo que o cara do SUP está me olhando um tanto ressabiado, com cara
de “Será que esse branquelo sabe o que está fazendo?”. Imagino que nesse
wipe-out a quatro-quilhas deve ter rodopiado como uma guilhotina desgovernada,
isso já aconteceu. É claro que sei o que estou fazendo, só preciso reencontrar
meu timing, me concentrar mais. Resolvo dar um tempo, afinal não há pressa nenhuma,
nenhum fotógrafo, nenhuma pressão, nada. Algumas séries de um metrão aparecem mais ao
fundo e me vejo remando com tudo. Na verdade, remando pelo meu pescoço! Parece
até que eu tinha esquecido que aquilo não é brincadeira... Caramba, isso é o
surf, uma vacilada e o paraíso vira inferno. Não tenho nenhuma tatuagem nem a
menor vontade de ganhar uma patada de tigre deste reef.
Eventualmente pego mais uma, saio
um pouco tarde demais e, ao pular da prancha, sinto o dedão arrastar no coral.
Incrível, mal encostou mas foi como pisar numa gilette – uns cortes agudos e
ardidos como navalha. O pé começa a sangrar – será que tem tubarão aqui?
Continuo na água. Já senti mais ou menos o astral, e passo a buscar um lugar
melhor no line-up. Espero, espero e então surge uma onda. Achei que alguém iria,
mas eles respeitaram a fila, ninguém vai e penso: Maravilha, ainda existe
aloha, valeu!!! Não tem um metro mas remo com força, essa eu não erro. Dou uma
passada, armo o cut-back, subo no lip, o bico aponta para baixo e então algo
inédito acontece: bem embaixo de mim, o mar parece ter virado cristal líquido;
por uma fração de segundo, suspenso sobre o espelho d’água, eu jurei que estava
surfando no ar! Décadas de surf e nada, nada sequer parecido! Continuo de pé,
simplesmente de queixo caído... A onda logo desaparece, mas a aquela imagem já
havia sido tatuada para sempre na minha memória.
Mas Moorea não é só surf.
Aproveitei também para fazer um tour pela ilha e acabei me deparando com
visuais que me emocionaram, como a praia de Temae, um estudo de beleza e cor
com alguns dos matizes mais espetaculares da Terra. Mergulhei com tubarões e
arraias no famoso Lagoonarium, um passeio imperdível, e, claro, aproveitei para
ir ao mercado adquirir uma das famosas pérolas do Tahiti. É um circuito pequeno,
com basicamente uma estrada que circunda a ilha pela costa, e a todo momento
você tem vontade de pular do carro e
sair correndo para se jogar na água – tal é a sucessão de assombros que
toma conta das suas retinas.
Com o passar dos dias, fica claro
de como eu precisava conhecer aquele
lugar, e então começo a entender porque algumas pessoas dizem que nossos
desejos mais fortes são maiores do que a própria vida – será então que são os
sonhos que nos escolhem, e não nós a
eles?
Meu corte vai cicatrizando, e com
a entrada de um novo swell resolvo conhecer outra onda – Atiha.Agora, com o Tahiti desmitificado e a prancha novamente no pé, pulo do barco tranquilo, já em tom de despedida daquele paraíso.
Há poucos surfistas na água. Sentado
em silêncio em meio àquela imensa lagoa azul, paro para refletir sobre os acontecimentos
dos últimos dias e então compreendo porque aquela viagem era tão importante
para mim. Eu precisava retornar à fonte.
Após duas horas surfando como nos
velhos tempos, os braços já não respondem, a maré começa a secar demais, e
então percebo que chegou a hora de voltar para casa. Exausto, mas feliz, deixo
a vazante me levar lentamente para o outside enquanto espero pela minha última
onda.
E então ela vem; viro a prancha,
remo decidido e um bodyboarder grita, incentivando. Uma longa parede se abre
abençoada pelo terral e venho lá de trás do pico, dando passadas calmas com a 8’7,
tão senhor de mim mesmo como se estivesse no píer do meu amado Rincão. Vou para
a base, cavo e mando a rasgada; volto e percebo que um barco está chegando
nesse momento, atento aos meus movimentos; dou uma olhada rápida e sinto a
sincronia dele chegando e eu saindo; continuo
na parede, já totalmente conectado ao
momento presente, e então me percebo inteiro, consciente de onde estou; e junto
disso, uma sensação inconfundível de que eu havia resgatado algo perdido no
passado, de ter afinal reencontrado o surf na minha vida. Percebo como ele é
sagrado para mim, que continua ali, onde sempre esteve, e que as minhas dúvidas
existenciais nada tinham a ver com ele, mas sim, com uma profunda necessidade
de viajar, de chegar aonde eu agora estava. Pela primeira vez em muito tempo,
eu me sentia satisfeito; pela primeira vez em muito tempo, eu não sentia necessidade
de estar em outro lugar: havia, afinal, saciado a minha sede de mundo. Me deixo
levar mais um pouco, até o limite da bancada coralínea, e então saio,
agradecido, enquanto mais uma pequena onda perfeita se desmancha nas águas das
Îles du Vent.