quinta-feira, 16 de agosto de 2007

Impressões da Feira do Livro de Criciúma


Da escuridão do palco emergiu um vulto e o mascarado adentrou no cenário, sombrio, como O fantasma da ópera. Com voz grave, emitiu num crescendo uma série de lamentações, que se tornaram cada vez mais lúgubres, até se transformarem num cântico melancólico e profundo.

Então uma figura surgiu, e todos os olhos se voltaram para o anjo, quase uma visão, os cabelos negros como ébano balançando ao vento sobre alvos véus de virgem.

Calma e silenciosamente, ela caminhou em direção do espectro que, agora de joelhos, aguardava o pronunciamento da musa como quem espera a palavra da salvação.

Nesse momento, uma forte rajada de ar irrompeu com violência, as vestes daquele ser angelical ondularam num movimento maravilhoso, e então todos puderam ouvir extasiados uma voz tão sublime que parecia encerrar em si todo o sofrimento da Humanidade.

O público, estático, como que hipnotizado ante aquele canto celestial, não pronunciava palavra, e só saiu do torpor quando a voz lentamente serenou, e então a platéia explodiu numa salva de palmas. Foi assim, nessa atmosfera de encantamento e magia, que teve início a II Feira do Livro de Criciúma.

Organizada pela Fundação Cultural de Criciúma e com apoio institucional da Câmara Catarinense do Livro, a feira foi surpreendente em todos os sentidos, superando as expectativas das livrarias, batendo recorde de público e transformando a praça Nereu Ramos num belo espetáculo artístico. Detentora do maior concurso literário do estado, Criciúma pode agora se orgulhar também de produzir este evento que, apesar de estar apenas na segunda edição, já é um clássico, e tem tudo para se firmar de vez no calendário cultural da cidade.

Contando com a presença de milhares de pessoas, principalmente estudantes, a feira teve uma apresentação bem diversificada. Entre espetáculos teatrais, mesas-redondas e sessões de autógrafos, os espectadores puderam conhecer de perto o trabalho de alguns dos principais autores do estado, que discorreram de temas tão variados como literatura catarinense e relatos de viagens, passando por textos jornalísticos, poesia e até anônimus gourmet.

Uma das atrações que mais chamaram a atenção do público foi a senhora Lili Steffens (foto acima, ao fundo), que veio de Blumenau para autografar o seu livro - com o pé. Para quem não sabe, Dona Lili perdeu os dois braços aos 5 anos num acidente, mas através de muita coragem e fé em Deus, hoje, aos 70, é um exemplo de vida para todos nós. Ela aprendeu praticamente sozinha a ler e escrever, nunca deixou de trabalhar, casou, teve três filhos, e ainda escreveu um livro para nos contar como conseguiu tudo isso.

Para mim, foi um grande privilégio participar da mesa “Literatura Sem Limites” com Lili Zwetsch Steffens; pude sentir a serenidade que irradiava, como se soubesse protegida por uma Força Maior. Deve ser por isso que o nome do seu livro é Nas Mãos de Deus.

Outra grata satisfação foi ter conhecido Clarice Kammer, que chegou a ficar tetraplégica num acidente de carro, mas que com muita fisioterapia e força de vontade recuperou os movimentos, e hoje trabalha em prol da acessibilidade e inclusão social em Criciúma. Se alguém não acredita que Deus escreve certo por linhas tortas, sugiro uma boa conversa com a Clarice. Ela mostrará como se faz quando a vida nos dá um grande golpe e, incapazes de olhar para o lado e ver tantas pessoas em situações ainda piores, desperdiçamos longos anos de nossas vidas amaldiçoando o céu e tentando entender os porquês.

A energia criativa do evento também influenciou belos trabalhos como o de Carolina Meyer Silvestre, que acompanhou e fotografou alguns dos principais momentos da feira. Uma das imagens foi simbólica: dois engraxates da praça entretidos com um livro, compenetrados, como que admirados do mundo novo que se lhes apresentava nas próprias mãos. A imagem viva do ser humano diante deste infinito portal de possibilidades que é a leitura.

Meus sinceros parabéns a todos os que, direta ou indiretamente, deram sua contribuição para o sucesso da II Feira do Livro de Criciúma. As sementes plantadas graças à abnegação de Carlos Ferreira, Sandra Silvestre, Iara Gaidzinski e muitos outros são imprescindíveis, e é bem provável que esta iniciativa venha a contribuir para o nascimento de uma nova geração de escritores e artistas em nossa cidade.





Publicado no site Engeplus, 16 de agosto de 2007

segunda-feira, 13 de agosto de 2007

Desmistificando a Deficiência


Aos 22 anos, Luciana Scotti, formada em Farmácia pela USP, era uma jovem como tantas outras: saía com os amigos, amava a vida e fazia planos para o futuro. Certo dia sentiu um mal-estar; segundos depois caía desfalecida. Levada inconsciente para o pronto socorro, ficou dois meses em coma, e sobreviveu por milagre. O diagnóstico: Acidente Vascular Cerebral. Só quando conseguiu recuperar a consciência ela compreendeu o tremendo golpe que a vida havia lhe reservado: subitamente muda, paraplégica e conseguindo movimentar apenas um dedo da mão esquerda, ela se viu diante de um desafio cruel.
Poucas pessoas teriam a força e a coragem que Luciana demonstrou: após meses lutando contra a depressão, ela finalmente reagiu e então tomou a assombrosa decisão de manter acesa a chama de seus sonhos. É realmente admirável o que ela tem realizado desde então: nove anos após o fatídico acidente que mudou sua vida, Luciana Scotti não só continua estudando, como já defendeu uma tese de mestrado, outra de doutorado (!) e já publicou quatro livros (um dos quais na 11ª edição). Ela está em pleno combate, continua saindo com os amigos e nos deixa, assim, sua maravilhosa lição de vida.
O grandioso exemplo de Luciana traz à tona o tema atualmente tão comentado da inclusão social. De maneira geral, muitas pessoas ainda têm uma visão deturpada da expressão deficiência física. Infelizmente, não são poucos os que pensam que a tal deficiência é sinônimo de defeito - quando na realidade, advém do termo déficit, que significa apenas perda, diminuição. Para muitos, uma diferença irrelevante. Será que é mesmo?
A primeira conseqüência desta visão medieval da limitação física é a destruição quase completa da auto-estima do ser humano. Se eu sou visto – aceito e permito que me tratem – como um ser defeituoso, fica bem fácil entender o preconceito e o baixíssimo número de pessoas com alguma deficiência que se vêem aptas a completar os estudos e entrar no mercado de trabalho...
O exemplo de Luciana é apenas um dos milhares de heróis anônimos que não se entregaram, continuam acreditando na vida e estão aí para nos lembrar desta verdade: mais que as físicas, as deficiências de pensamento são a verdadeira praga a ser combatida. E podem ser, caso não repelidas com vigor, o verdadeiro obstáculo à evolução humana - até (senão principalmente) das pessoas ditas normais...

Publicado no Jornal da Manhã, de Crciúma, em 30/03/2007.